Ballet Gulbenkian




O Ballet Gulbenkian (1961-2005) foi a mais importante companhia de dança portuguesa do século vinte.


Foi formada no início do ano de 1961, com o nome de Grupo Experimental de Ballet - dependendo administrativamente do recém-criado Centro Português de Bailado - e subsidiada pela Fundação Calouste Gulbenkian (FCG). O seu espectáculo inaugural teve lugar no teatro Rivoli, no Porto, no dia 11 de Maio de 1961. Do seu elenco faziam parte os bailarinos Isabel Santa Rosa, Carlos Trincheiras, Jorge Trincheiras, Bernardette Pessanha, Carlos Caldas, Albino Morais, Isabel Ruth, Manuela Varela Cid e Maria Antonieta (posteriormente conhecida por Antonieta Ribeiro). A bailarina Vera Ribeiro da Silva - irmã de Wanda Ribeiro da Silva que fazia parte do grupo original mas acabou por não participar na estreia e, logo depois, abandonar a direcção, de que também fazia parte - participou como "colaboradora" nos primeiros espectáculos, dirigidos e coreografados pelo inglês Norman Dixon que, para além de professor, foi o seu primeiro director artístico.


Os seguintes foram, Walter Gore, um coreógrafo escocês, Milko Sparemblek, um coreógrafo croata, Jorge Salavisa, professor e bailarino português, Iracity Cardoso, uma bailarina e ensaiadora brasileira e o coreógrafo português Paulo Ribeiro.[1]


O Ballet Gulbenkian (BG), mesmo depois de aniquilado, continuou a assumir-se como um verdadeiro "património nacional" já que, desde a sua fundação, sempre foi considerado a “companhia de dança portuguesa por excelência" do século XX. Por ela passaram os melhores artistas nacionais (bailarinos e coreógrafos) e muitos estrangeiros de nomeada. Nela se formaram algumas gerações de artistas – sendo, por isso, lembrada também como uma espécie de escola -, e o seu extenso reportório representa o que de melhor se criou em Portugal, naquele longo período temporal.


O grupo da Fundação foi, inclusivamente, escolhido com alguma regularidade para acompanhar comitivas oficiais em viagens protocolares ao estrangeiro e, ao longo de 44 anos, foi para a maioria dos portugueses, na prática, a companhia "estatal" ao representar simbolicamente o nosso país no exterior. Ainda que de gestão privada e perfeitamente independente dos poderes públicos. Mesmo assim, após a criação da CNB, em 1977, os sucessivos presidentes da República Portuguesa continuaram a requisitar à FCG o seu grupo de bailado para os acompanhar, como atractivo cultural, nas suas saídas do País. Em casos pontuais a própria Fundação fez a sua companhia de dança exibir-se perante ilustres convidados forasteiros de visita a Portugal, designadamente Leopoldo Senghor, Presidente da República do Senegal, a 28 de Janeiro de 1975; o Presidente da República Federativa do Brasil, João Baptista de Oliveira Figueiredo, a 1 de Fevereiro de 1981; a rainha Isabel II da Grã-Bretanha, a 27 de Março de 1985 e, finalmente, os Príncipes de Gales (Carlos e Diana), a 28 de Fevereiro de 1987.


O seu sucesso poderá medir-se, entre outras premissas, pelo seu extenso e ecléctico reportório, que rivalizava com o das melhores e mais conceituadas companhias de dança de todo o mundo [1]. O nível artístico e profissional do BG, reconhecidamente como um dos mais elevados na dança contemporânea europeia, nunca teve paralelo em Portugal, e o carisma e personalidade dos seus artistas foram uma marca sempre presente nos seus espectáculos. Durante a sua existência formou públicos e um número muito significativo de profissionais, marcou percursos, renovou visões e, sobretudo, elevou a vivência artística de um público muito limitado em opções e artisticamente subnutrido. A qualidade das suas produções sempre foi uma mais-valia para um grupo que fora das nossas fronteiras, elevava bem alto o nome do mecenas Calouste Gulbenkian, da fundação com o seu nome e, acima de tudo, o de Portugal.


Passados alguns anos sobre a extinção do emblemático BG e numa época em que está a desaparecer do número dos vivos toda uma geração de artistas pioneiros que trouxeram o necessário profissionalismo a uma arte que em Portugal teimava em permanecer com contornos amadores, a sua memória está carregada de saudade.


É curioso referir que apenas em 1995 se publicaram, pela primeira vez em Portugal, uma série de biografias de artistas da dança portugueses – quase todos ligados ao BG - numa obra comemorativa do Centro Nacional de Cultura: “Portugal 45-95, Nas artes, nas letras e nas ideias” (CNC) da autoria de António Laginha. Conhecendo o autor, em profundidade, a literatura da dança portuguesa e tendo escrito sobre o Ballet Gulbenkian mais do que qualquer outro jornalista ou académico português (ou, mesmo, estrangeiro), construiu a partir da sua experiência como elemento do elenco da companhia da Gulbenkian e de crítico de dança a obra "Memória da Saudade - Ballet Gulbenkian (1961-2005)" [2] em que se fez uma leitura do percurso do BG através de testemunhos de alguns dos seus mais expressivos protagonistas.


A criação do Ballet Gulbenkian ficou-se a dever à notória procura de melhoria de profissionalismo, da parte de um grupo valorosos de artistas, bem como ao estabelecimento de um espaço de trabalho que pudesse elevar o nível e o estatuto artístico de um punhado de bailarinos oriundos dos poucos agrupamentos e estúdios de dança em laboração em Portugal, no início da década de 60 do século vinte.


Após algumas tentativas menos conseguidas, no final da década de 50 e início da de 60, surge em Lisboa o embrião de uma companhia de dança, na sequência de várias propostas de apoio feitas (mais ou menos oficialmente) à jovem Fundação Gulbenkian, financiada com verbas com origem na fortuna do multimilionário arménio Calouste Sarkis Gulbenkian. José de Azeredo Perdigão e, sobretudo, a sua mulher Maria Madalena, foram os entusiastas de um novo paradigma nas artes portuguesas em que a concretização de uma companhia de dança, liberta de cânones tradicionais, não estava fora do contexto da nova instituição e nem dos seus desejos e ambições culturais e artísticas. Em torno de um ideal comum, bailarinos e "amantes" da arte de Terpsícore (familiares e amigos, jornalistas que exerciam a crítica de dança e simples artistas diletantes), partiram para um projecto algo arriscado mas estimulante, com a direcção do inglês Norman Dixon e o inequívoco apoio da FCG. Um pequeno grupo de nove valorosos bailarinos, saídos respectivamente de uma companhia profissional, o “Verde-Gaio” (já numa fase de evidente declínio), do Círculo de Iniciação Coreográfica de Margarida de Abreu, e do estúdio de Madame Ruth (Asvin), serviram de base de apoio a um projecto que haveria de congregar também uma componente pedagógica da qual sairiam mais alguns artistas portugueses que, aos poucos, foram dando forma a uma companhia que se estreou com o nome de Grupo Experimental de Ballet do Centro Português de Bailado. Posteriormente foi chamada Grupo Gulbenkian de Bailado em 1965, e, por último, em 1975, Ballet Gulbenkian.


O Centro Português de Bailado era uma pequena associação da qual faziam parte figuras ligadas à dança e às artes, com origens e percursos muito diversificados, numa época em que alguns críticos (nomeadamente José Sasportes e Tomaz Ribas) apontavam novos caminhos para a dança portuguesa. Nessa altura foi, mesmo, publicado um livro com propósitos idênticos pelo jurista Luís Carvalho e Oliveira, ligado ao centro, intitulado Problemas do Ballet em Portugal, 1962). Num período em que circulavam no país duas revistas da especialidade – embora para um público muito reduzido –, tanto uma como outra, para além dos jornais em circulação, faziam uma publicidade relativamente expressiva às companhias estrangeiras visitantes. As quais, aliás, obtinham muito sucesso junto do público e da crítica. Assim como os filmes de dança que, então, estavam muito na moda. Também o surgimento e difusão da rede de televisão viria a contribuir, em Portugal, para uma certa divulgação dos poucos artistas e da nossa dança.


Foi num cenário complexo mas estimulante e (até) algo propício, com a criação da poderosa Fundação Gulbenkian, que nasceu a mais conhecida - e de maior longevidade - companhia portuguesa de dança.


Note-se que o "Verde-Gaio", oficialmente, funcionou 43 anos (entre 1940 e 1983), embora com diversas descontinuidades, e o BG apenas um ano mais (entre 1961 e 2005), mas, ao contrário da sua congénere, sempre em laboração contínua e com resultados, naturalmente, muito diversos.


O primeiro período da companhia, sob a direcção de Norman Dixon, configurou uma fase de muito trabalho – por vezes algo caótico - e sedimentação, junto do público e da crítica. Sempre com o precioso patrocínio e a apertada vigilância de Madalena Perdigão, antes, mesmo, das suas primeiras apresentações públicas. Quando o grupo é oficialmente "absorvido" pela FCG e a sua administração passa directamente para as mãos do Serviço de Música, dirigido, desde a primeira hora pela Senhora Azeredo Perdigão, esta convida Walter Gore para a sua direcção e muda-lhe, em Outubro de 1965, o nome para Grupo Gulbenkian de Bailado. O “Sr. Gore”, foi o director que, definitivamente, chamou a si a imagem do grupo através das suas coreografias e exerceu uma forte actividade pedagógica junto da reduzida "comunidade da dança" portuguesa a vários níveis, designadamente o artístico e o técnico. Com o director seguinte, Milko Sparemblek, que assumiu a direcção em 1970, a companhia vira-se definitivamente para o exterior até que o "25 de Abril" veio interromper um ciclo de grande vitalidade e projecção do agrupamento. A saída de Madalena Perdigão da FCG deixa o grupo numa situação peculiar a nível artístico e de gestão, embora a companhia já tivesse passado por alguns períodos sem director fixo, intitulados pelos estudiosos e jornalistas de “interregnos”. Sobretudo nesses intervalos falou-se, muitas vezes, que a Fundação podia deixar cair o seu grupo de bailado mas, apesar de todas as ameaças (mais ou menos veladas designadamente a seguir à "revolução dos cravos") tal nunca aconteceu. Em 77 o grupo acabaria por transitar para as mãos de Jorge Salavisa, que durante quase duas décadas dirigiu o BG e lhe imprimiu uma dinâmica e um perfil próprios, fortemente apoiado pelos Serviço de Música e administração da FCG, nas pessoas, respectivamente de Carlos Pontes Leça e José Blanco. A sucessora de Salavisa, a brasileira Iracity Cardoso, não teve uma passagem muito convincente artisticamente nem auspiciosa, do ponto de vista humano, e Paulo Ribeiro, por vontade da FCG, funcionou como um director “a prazo” até à ruidosa e muito contestada extinção do grupo, no Verão “quente” de 2005.


A história do BG deve, pois, ser balizada entre 1961 e 2005, abarcando um período de 44 anos e não de 40 como, erradamente, se tem vindo a considerar, por injunção dos próprios escribas funcionários do Serviço de Música.


Mesmo após a criação da Companhia Nacional de Bailado, em Outubro de 1977 – que teve em Armando Jorge, saído do BG, o seu director mais duradouro – foi o grupo da Gulbenkian que assegurou uma presença regular e constante da dança nos palcos do continente e ilhas e se internacionalizou com o talento coreográfico e a visão artística de Milko Sparemblek. Na sequência de um período "pós-revolucionário", o grupo veio a estabilizar com o português Jorge Salavisa. Os 44 anos de vida do BG provam que o trabalho de base – embora sempre passível de questionamento a nível de metodologia e de opções coreográficas – acabou por ter continuidade e que, mesmo nascido de um modo pouco usual para os padrões da época no nosso País, os nove bailarinos que estiveram na sua base provaram bem o seu empenhamento e consistentes capacidades artísticas.


Foi recorrente, durante quase meio século, tanto os breves escritos sobre o BG como as resenhas históricas da companhia, começarem com a seguinte ideia da autoria de José Sasportes:“improvisou-se o Grupo Experimental de Bailado, posteriormente chamado Grupo Gulbenkian de Bailado" (Sasportes, 1970, p. 279).


Ou com essa mesma ideia, ainda que expressa de outras formas. O referido escritor – que esteve na primeira direcção do Centro Português de Bailado e foi autor de uma história da dança portuguesa que terminou em 1969 – também acrescentaria que "dificuldades várias levaram o curso (especial de aperfeiçoamento para bailarinos) a transformar-se, de forma absurda, no pequeno Grupo Experimental de Ballet" (Sasportes, 1970, p.297). Porém estas duas afirmações, como se pode verificar, não só contêm uma ideia pouco rigorosa, como distorcida, da realidade. A FCG, através de Madalena Perdigão – e com a anuência, desde logo, do seu marido, então Presidente do Conselho de Administração – esteve sempre consciente da paisagem terpsicórica portuguesa e dos seus protagonistas. E também muito vigilante em relação a um pequeno grupo que patrocinou e subsidiou desde o primeiro minuto. O GEB começou por ser uma estrutura que não estando sob a alçada directa da instituição durante os primeiros quatro anos, não foi deixada ao acaso pela Senhora Perdigão. Antes pelo contrário. E o seu (muito positivo) percurso técnico e artístico que evoluiu e conquistou um lugar de destaque e com alguma solidez no país, levou a FCG, em 1965, a assumir a gestão artístico-financeira de um conjunto coreográfico que, então, foi colocado no mesmo pé de igualdade da Orquestra Gulbenkian. A divulgada ideia de que os primeiros anos do BG – durante os quais se criou uma obra de inquestionável qualidade, Homenagem a Florbela, que ainda hoje pode ser apreciada – foram alheios à tutela da FCG, deve-se, em parte, aos escritos de Carlos Pontes Leça, director adjunto do Serviço de Música da FCG nas últimas duas décadas de existência do BG. O mesmo apelidou, eufemisticamente, os anos que abrangem o período entre Maio de 1961 a Setembro de 1965 (data de mudança de nome para GGB) – de "pré-história do BG". Na verdade, como pudemos verificar, o GEB foi um empreendimento concertado, em que se juntaram muitas pessoas ligadas à dança lisboeta – ainda nem havia no Porto um pequeno foco personalizado pelo professor Pirmin Trecu (1930-2006) antigo bailarino do Royal Ballet, radicado no Norte de Portugal a partir de 1961 –, entre as quais alguns dos melhores bailarinos da época. Entre eles encontrava-se, mesmo, aquela que haveria de se tornar na bailarina portuguesa de maior prestígio e cuja carreira apresenta uma consistência de mais de três décadas, Isabel Santa Rosa, a par de jovens artistas com grande potencial como foi o caso do seu futuro marido, o coreógrafo Carlos Trincheiras – que se veio a revelar um dos maiores criadores portugueses do século XX – e o irmão mais novo deste, Jorge Trincheiras, que haveria de ter uma carreira internacional em companhias como os Ballets do Século XX, de Maurice Béjart, e o Ballet da Ópera de Chicago, de Ruth Page. Se aos alunos pouco experientes, que acabaram por mais tarde se juntar ao elenco do grupo, eram oferecidas pela Fundação bolsas de estudo para financiar as suas actividades, os artistas profissionais eram pagos como em qualquer outra companhia. Designadamente Isabel Santa Rosa que abdicou de um lugar de primeira bailarina do “Verde-Gaio” para ganhar um salário mais modesto no recém-formado grupo, por genuíno empenhamento na construção de um projecto que muitos abraçaram sem grandes questionamentos.


Por outro lado, através de alguns factos apontados, verifica-se que, desde logo, a FCG coagia, ainda que indirectamente, a direcção do grupo a apresentar boas contas e resultados positivos. O que facilmente se prova pelas várias visitas à sede, pelos contactos que mantinha na direcção e até pelas “cartas de desvinculamento” de artistas, assinadas por Azeredo Perdigão. Designadamente uma, em meados de 1961, destinada a uma colaboradora do grupo (Vera Ribeiro da Silva) poucos meses após a estreia do GEB, e outra, em Novembro de 1963, com o fim de afastar oficialmente o coreógrafo e professor Norman Dixon, sumariamente despedido da companhia por decisão da directora do Serviço de Música, Madalena Perdigão. Deveremos, pois, ler a história “oficial” do BG com algumas reservas pois foi escrita e habilmente publicitada – em edições próprias e na comunicação social – por funcionários da própria Fundação, pagos para defender pontos de vista, estratégias artísticas e políticas, que, naturalmente, tivessem em conta os “interesses da casa". E, muitos estão plenamente convencidos que foi muito mais nos gabinetes do SM que se lançaram os dados relativamente aos destinos do BG que na mesa de trabalho de alguns dos directores. Os mais fracos, como Paulo Ribeiro que o admitiu em público, foram completamente “manietados” pelo Serviço de Música – leia-se, primeiro por Madalena Perdigão e depois por Pontes Leça – ou mesmo por outras pessoas ligadas àquele departamento ou à Administração –, tendo a FCG utilizado a sua imagem, em muitas situações, como a “parte visível do icebergue”. Os indivíduos que, verdadeiramente, conduziram os destinos da companhia (com assinalável recato, acrescente-se), não sendo dados a assumir em público o seu poder – por razões que não foi possível confirmar - acabaram por utilizar alguns directores artísticos do BG como uma espécie de “agentes de transmissão” e até como figuras mais ou menos “decorativas”, quando isso servia os seus interesses e objectivos.


Outro factor importante relativamente à vida do BG, e cuja importância nunca foi estudada, prende-se com o facto de a sua génese estar associada a um nome de grande prestígio no círculo maçónico, João Ribeiro da Silva, e que, muito possivelmente terá sido apoiado por outros elementos ligados ao Grande Oriente Lusitano – o seu vínculo directo - ou a outra qualquer "loja" portuguesa. Este tipo de informações é (particularmente) exíguo por razões que se prendem com o exemplar secretismo imposto aos irmãos maçãos. Porém, tudo leva a crer que, ainda numa fase inicial da vida do grupo, tivessem havido "interesses" mais ou menos dissimulados e nunca perceptíveis aos olhos do público e, nem mesmo, dos artistas. Parece, pois, que existe um período que se estende por quase duas décadas – em que Madalena Perdigão reinou "forte e segura" no Serviço de Música e, naturalmente, no BG – sobre as quais será difícil obter dados seguros que associem a gestão da companhia a "valores" ou "directivas" com origem na supra citada organização.


Já no que toca à fase que sucedeu à revolução do 25 de Abril de 1974, e que corresponde a um segundo fôlego da companhia, depois dos cinco anos com Milko Sparemblek na direcção, parece ter-se proporcionado a aplicação de uma certa filosofia e até, mesmo, seguido orientações a nível de gestão que podem indiciar influências e até o forte poder, quase sempre oculto, de uma outra estrutura mais moderna, a Opus Dei. O que não seria de estranhar pois muitos funcionários superiores da FCG pertenciam (discretamente) àquela instituição, sendo que um deles, até nem podia esconder convincentemente essa sua filiação por viver num lar da Obra de Deus, situado nas imediações da FCG. O clima de secretismo que tem acompanhado as duas organizações, durante tantos anos, criou em muita gente uma natural relação de desconfiança, se bem que, na Fundação, e mais precisamente no BG, os bons resultados artísticos nunca tivessem sido negligenciados. Muito pelo contrário.


Independentemente destas considerações, o BG atravessou o meio século mais importante e produtivo da dança portuguesa de todos os tempos, até ser dissolvido por razões muito pouco claras e nunca devidamente esclarecidas. Com ele morreu a companhia portuguesa de bailado de maior prestígio nacional e internacional e que deixou um espólio notável a nível de acervo coreográfico – e também musical e plástico – cuja qualidade foi sucessiva e regularmente atestada pelas críticas em Portugal e fora do país. Pode-se afirmar que apesar de alguns directores como Dixon e Gore terem investido numa coreografia marcadamente estrangeira – estes ao “estilo inglês” - e Sparemblek (com obras de influência marcadamente francesa e norte-americana no reportório) ter tentado equilibrar com criações nacionais, foi Salavisa quem encomendou um número maior de obras a coreógrafos portugueses do que a estrangeiros, verificando-se, num total de 425 peças, 219 criadas por artistas nacionais, em paralelo com 203 da autoria de estrangeiros. Entre os coreógrafos mais representativos da companhia contam-se os portugueses, Águeda Sena, Carlos Trincheiras, Vasco Wellenkamp, Armando Jorge, Olga Roriz, Rui Horta e Paulo Ribeiro.


Bem como bailarinos nacionais de gabarito - como os já referidos Isabel Santa Rosa, Carlos Trincheiras, Armando Jorge, Jorge Trincheiras e Carlos Caldas - e, Graça Barroso, Isabel Queiroz, Carlos Fernandes, Marta Ataíde, Miguel Lyzarro, Maria José Branco, Benvindo Fonseca, Elisa Ferreira, Paula Pinto, Luís Damas, Francisco Rousseau, Rui Pinto e José Grave, entre muitos outros, e estrangeiros como Paula Hinton, Ger Thomas, Margery Lambert, Johanne O’Hara, Patrick Hurde, Gagik Ismailian e Barbara Griggi, que deram corpo a grandes criações de coreógrafose estrangeiros de linhagem como Norman Dixon, Walter Gore, Milko Sparemblek, John Butler, Lar Lubovitch, Louis Falco, Christopher Bruce, Hans van Manen, Jiri Kylian e Mauro Bigonzetti, entre muitos outros. 


A peça mais dançada durante a existência do grupo foi, sem margem para dúvidas, o glorioso e muito aplaudido Messias, do norte-americano Lar Lubovitch. Esta obra foi interpretada 140 vezes enquanto o seu “negativo” do mesmo criador, Wirligogs, aparece na sétima posição. Em segundo e terceiro lugares, surgem, respectivamente, Treze gestos de um corpo (mús. de António Emiliano), de Olga Roriz, e Danças para uma guitarra (mús. de Carlos Paredes), de Vasco Wellemkamp. Estas são as duas únicas peças portuguesas no “top ten” dos bailados mais exibidos pela companhia. Para além dos dois creditados a Lubovicht surgem, por ordem decrescente, um par de bailados do holandês Hans van Manen (Canções sem palavras e Cinco tangos, esta em oitavo lugar), Cantata, do italiano Mauro Bigonzetti, Sinfonia em Ré, do checo Jiry Kylian, Jardim cerrado, do espanhol Nacho Duato e, em décimo lugar, Hero do norte-americano Louis Falco. Só em décimo primeiro lugar volta uma dança de autoria portuguesa, um remake do Prelúdio à sesta de um fauno, de Nijinskly-Debussy, assinado por Vasco Wellemkamp.  


Em resumo, o BG foi, inquestionavelmente, a companhia portuguesa de maior projecção nacional tendo realizado 2051 espectáculos ao longo dos seus 44 anos de existência. Pelos registos jornalísticos – notícias e críticas – o seu sucesso foi bastante acentuado quer junto do público quer da crítica nacional e internacional. Pelo número de países visitados, mais de duas dezenas, o BG foi a companhia portuguesa por excelência na promoção das nossas artes.


No nosso país o grupo apresentou-se maioritariamente na sua “casa” - o Grande Auditório da Fundação Gulbenkian – tendo aí realizado 881 espectáculos ao longo da sua existência. Os palcos que mais visitou, tratando-se de espectáculos inseridos em digressões nacionais, foram, por ordem decrescente, o do Teatro Baltazar Dias, no Funchal (Madeira), o do Gil Vicente (Coimbra) e o do Rivoli (Porto), com 59, 54 e 53 exibições, respectivamente. De seguida aparecem dois teatros de Lisboa (o Tivoli, com 43 espectáculos e o Politeama, com 42), justamente antes da companhia possuir o seu próprio local de trabalho. De seguida, Leiria, Évora e Faro foram as cidades mais visitadas em Portugal, respectivamente com 40, 33 e 29 apresentações. Em décimo lugar, curiosamente, encontra-se o Grande Auditório do Europarque, em Santa Maria da Feira, um palco moderno que começou a desenvolver uma programação regular a partir do ano de 1998. No estrangeiro o BG deslocou-se a 21 países em quatro continentes, com predominância na Europa. Para algumas dessas viagens ao exterior e para certos projectos que a Fundação privilegiou nunca faltaram as necessárias verbas. Houve mesmo casos, como foi a (luxuosa) montagem de O quebra-nozes, em 1970, da autoria de Anton Dolin (1904-1983), segundo o original de Lev Ivanov (1834-1901), em que, por ordem de Madalena Perdigão, se “gastou tudo o que foi necessário para que Lisboa pudesse assistir a uma obra muito acarinhada do reportório bailado clássico ao mais alto nível” (nas palavras da ballerina Isabel santa Rosa), na senda de um certo “espirito “diaghileviano”, mas dançado e produzido por portugueses, ainda que supervisionado por um estrangeiro do mais alto gabarito. A lista de convidados da FCG, no que concerne a bailarinos-estrela e, sobretudo, a coreógrafos famosos foi impressionante e facilmente se percebe que a herança do Sr. Gulbenkian foi bem utilizada para realçar a qualidade e o empenho da Fundação na criação de uma instituição feita por portugueses e para portugueses, ao construir um reportório ecuménico, variado e notável, que se constituía como um desafio quotidiano para os artistas que integravam a tão simbólica companhia. Se nos últimos anos os quadros superiores da FCG começaram a ver a sua companhia de dança como um pesado fardo (a nível financeiro, naturalmente) o certo é que nunca, em tempo algum, deixou de ser o mais eficaz instrumento promocional da instituição dentro e, sobretudo, fora das nossas fronteiras.



Referências




  1. «Fundação Gulbenkian extingue Ballet». Jornal Público 


[1] Na obra Ballet and dance, the world's major companies, editada em Nova Iorque em 1977 pela Excalibur Books , Linda Doeser apresenta as maiores e mais expressivas companhias de dança mundiais da época, incluindo o Ballet Gulbenkian. Por comparação pode-se concluir que o grupo português apresentava um reportório bem mais extenso e variado que a maioria dos conjuntos coreográficos de topo.


[2] Laginha, A (2015) Memória da Saudade - O percurso artístico do Ballet Gulbenkian como estrutura de referência na dança portuguesa (1961-2005). Lisboa.







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